A polarização que explodiu no país na eleição de 2018 aparentemente não perdoa nenhum item do noticiário, com resultados previsíveis: simplificações, leituras incorretas e uma dose razoável de vergonha alheia.
A bola da vez é a grave crise entre os EUA e o Iraque, que nas redes sociais brasileiras foi degradada a mais um capítulo da disputa entre o bolsonarismo e a esquerda.
No centro da discórdia, as relações amistosas propugnadas pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT, 2003-2010) com o regime dos aiatolás e o alinhamento de Jair Bolsonaro (sem partido) com os EUA no embate atual.
A crise vem escalando nos últimos anos, mas o estopim agora foi o assassinato, por um drone americano, do general Qassim Suleimani, principal arquiteto das ações do Irã no exterior, ocorrido em Bagdá no dia 3 passado.
"A irresponsabilidade política colocada a serviço daqueles que lucram muito com os negócios do petróleo e da indústria de armas no mundo", publicou no Twitter a presidente do PT, Gleisi Hoffmann (PR), logo naquela sexta.
Ela citava entrevista ao UOL de Celso Amorim, petista que foi chanceler da era Lula e no governo Itamar Franco, no qual ele dizia: "Desde a crise dos mísseis [de Cuba, em 1962] nunca estivemos tão próximos de um conflito armado direto entre dois Estados".
Como guerras entre países abundaram de lá para cá, supõe-se que Amorim tenha tentado na realidade dar gravidade à crise --o que é um certo exagero, bastando lembrar de conflitos dos EUA no Golfo Pérsico ou a invasão do Afeganistão pelos soviéticos, em 1979.
Amorim foi o responsável, no lado brasileiro, pelo fracassado acordo nuclear costurado com a Turquia e o Irã em 2010. Foi a maior decepção externa de Lula, que havia sido incentivado por EUA e França, só para ser deixado falando sozinho ao fim.
Deputados de esquerda condenaram a ação no Iraque. Comitiva do PC do B assinou em Brasília o livro de condolências pela morte de Suleimani, acusado pelos EUA de 600 mortes de americanos e aliados.
A contragosto da ala militar e da Agricultura, preocupados respectivamente com riscos de segurança e perdas comerciais com o Irã, o Itamaraty divulgou uma nota na mesma sexta (3) em que endossava o assassinato.
No dia seguinte, entrou em campo o principal ator familiar do clã Bolsonaro na área externa, o filho deputado e ex-indicado a embaixador em Washington, Eduardo (PSL-SP).
"Os atentados na Argentina em 1992 e 1994 provam que o terrorismo atual globalmente" (sic), disse no Twitter.
Ele se referia aos dois maiores ataques já executados na região, contra alvos judaicos em Buenos Aires, atribuídos ao Irã e à milícia libanesa Hizbullah, nos quais morreram 114 pessoas.
Ao longo do fim de semana, a troca de farpas intensificou-se. Simpatizantes de um lado falavam que a esquerda "passava pano para um regime terrorista", enquanto os do outro viam "lacaios do imperialismo de Donald Trump".
A deputada bolsonarista Bia Kicis (DF) postou no Twitter, no domingo (5), uma publicação da página antiesquerdista Ódio do Bem sobre a execução de homossexuais no país persa, provocando "a militante esquerdista que abraçou o terrorismo do Irã".
No dia seguinte (6), o deputado Ivan Valente (PSOL-SP) escreveria: "A política vira-latista do governo Bolsonaro envergonha o povo brasileiro".
Exageros retóricos à parte, ambos os argumentos são defensáveis em algum grau. O Irã é uma teocracia com estrito controle da vida pública, amplamente conhecida por promover ataques assimétricos por meio de grupos aliados.
Para entidades de direitos humanos como a Human Rights Watch, o país é condenável no seu trato a minorias e às mulheres. Teerã nega tudo como propaganda.
Já o alinhamento automático do Brasil às ações dos EUA, reiterado por Bolsonaro, é criticado por diplomatas e especialistas como prejudicial aos interesses nacionais, não menos porque o Irã é o quarto maior comprador de alimentos brasileiros.
Partidos como PT e PSOL emitiram notas contrárias aos ataques americanos e criticando o apoio brasileiro.
O próprio ex-presidente Lula entrou no jogo, ao conceder entrevista no dia 8 ao site Diário do Centro do Mundo. "Os EUA gostam de criar confusão e de preferência longe do território deles. Não há necessidade de se inventar 'terrorismo' no Irã", disse, republicando a frase em suas redes.
Naquela tarde, foi a vez de Bolsonaro pai, com a "live" no Facebook na qual aparecia assistindo ao pronunciamento de Trump sobre crise --virou meme imediato.
Ele disse que Lula havia defendido que o Irã pudesse aumentar o enriquecimento de seu urânio acima dos 20%.
Isso seria mais do que o necessário para o uso em pesquisas pacíficas. Na verdade, o acordo previa a limitação.
Na madrugada do dia 9, Bolsonaro postou uma foto de Lula com o então colega iraniano Mahmoud Ahmadinejad, ambos sorridentes. "O povo que esquece seu passado está condenado a perder sua liberdade", dizia o presidente.
Já o PSOL afirmou no dia 8 que o chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, se contradisse ao declarar que "não haveria mais dinheiro para ditadura" ao mesmo tempo em que falou de US$ 10 bilhões da Arábia Saudita em um vídeo.
No caso, o reino absolutista do Golfo ofertou o dinheiro para investimentos no Brasil, não o contrário, como ocorreu com o BNDES em relação a ditaduras como Cuba.
Também houve discussões tortuosas. Eduardo e alguns seguidores bolsonaristas recuperaram, além dos ataques à Argentina nos anos 1990, a afirmação americana e israelense de que o Hizbullah opera ativamente na Venezuela e na Tríplice Fronteira entre Brasil, Argentina e Paraguai.
Presidente da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara, Eduardo dedicou 25 de suas 68 publicações e repostagens de 4 de janeiro à tarde de sexta (10) no Twitter ao tema EUA-Irã.
Alguma dose de ridículo também se fez presente.
Na manhã de segunda, o deputado federal Carlos Zarattini (PT-SP) postou vídeo com uma cena de ataque aéreo: "Massacre brutal. Veja como os drones americanos mataram o general iraniano".
Na verdade, eram imagens de um videogame. Um deputado, Alencar Braga (PT-SP), republicou o erro --que foi admitido e deletado por Zarattini, que se desculpou.
Ele foi ridicularizado por vários críticos do PT, inclusive Eduardo. O filho 03 de Bolsonaro, contudo, também passou vergonha no dia 9 no Twitter, e não se desculpou.
"Há quanto tempo você não vê um prisioneiro em uniforme laranja --normalmente um cristão ou ocidental-- sendo decapitado com faca pelo Estado Islâmico? Agradeça à nova política externa de @realDonaldTrump que bombardeou estes terroristas e reduziu seus territórios a quase pó."
A resposta é: há menos de duas semanas. Em 27 de dezembro, foram divulgadas imagens da execução nesses moldes de 11 cristãos pelo grupo terrorista na Nigéria, com direito a nota do Itamaraty e repúdio no Twitter do chanceler Ernesto Araújo, que joga em dupla com Eduardo. (Igor Gielow/FolhaPressSNG)