Por Giovana Girardi
Não é de hoje que a ciência alerta que o avanço do desmatamento na Amazônia para a abertura de novas áreas para a agropecuária é um tiro no pé do próprio setor. Por motivos já muito bem conhecidos, como o fato de que a floresta produz a chuva que cai sobre as plantações. Agora uma nova pesquisa deu uma ideia mais clara do calibre desse tiro.
As áreas mais desmatadas na Amazônia – como o norte do Mato Grosso, Rondônia, sul do Amazonas e também o leste do bioma – já apresentam um atraso no início da estação chuvosa, que é exatamente quando os produtores começam a plantar a soja. O atraso no plantio acaba impactando também o cultivo de milho, que entra na sequência da colheita da soja.
Pesquisadores do Centro de Sensoriamento Remoto da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) observaram que em um período de 20 anos, entre 1999 e 2019, as regiões que mais perderam floresta tiveram um atraso acumulado de aproximadamente 76 dias no início da estação chuvosa agrícola. Esses locais tiveram uma redução de 360 mm nas chuvas e um aumento de 2,5 ºC na temperatura máxima.
O trabalho publicado no International Journal of Climatology, da Royal Meteorological Society, foi o primeiro a conseguir isolar apenas os impactos que o desmatamento tem sobre as alterações observadas. A ideia foi separar a perda da floresta de outras condições que também vêm afetando o comportamento do clima, como o aquecimento global e fenômenos naturais, como o El Niño e a La Niña.
Conversei com o climatologista Argemiro Teixeira, que liderou a pesquisa, e ele explicou que as mudanças climáticas têm um efeito cumulativo, de alterações ao longo de décadas, mas o efeito do desmatamento é quase imediato. “Quando tira a vegetação, tira automaticamente a umidade. As secas e os problemas que a agricultura vem enfrentando não são só por causa das mudanças climáticas e o El Niño, mas também por causa do desmatamento”, disse.
A novidade do estudo foi quantificar esse impacto na dupla safra de soja e milho que domina as paisagens amazônicas, um sistema extremamente dependente do início da estação chuvosa. “Quando começa a chover, os produtores plantam a soja. Eles ficam esperando o momento mais favorável porque, se plantarem antes da chuva, podem perder tudo. O ciclo leva de 120 a 140 dias. Eles, então, colhem a soja e na sequência já plantam o milho, ainda aproveitando o período de chuva”, afirma Teixeira.
Como é uma agenda apertada, de cerca de seis a sete meses, se as chuvas demoram a começar, essa segunda safra pode ficar inviabilizada. “Alteração no volume de chuva e o aumento de temperatura são importantes, mas essa mudança no calendário pode ser muito mais grave para o produtor”, diz o pesquisador.
“Neste ano, por causa de toda a seca do ano passado, muitos produtores não vão ter a segunda safra. O milho já deveria estar em campo, mas não está”, complementa.
O trabalho aponta ainda que o impacto do desmatamento é regional. “Proprietários em áreas mais preservadas têm um menor risco de atraso. Já os que estão em uma área mais degradada, o risco é maior”, explica Teixeira.
E aí não adianta muito só fazer a lição de casa dentro da fronteira. Uma propriedade que está de acordo com o Código Florestal, mantendo 80% da vegetação preservada, pode também sofrer com falta de chuva se os vizinhos não estiverem preservando igualmente.
De acordo com o estudo da UFMG, nas regiões onde 80% da floresta já foi perdida, na primeira safra, da soja, há um risco de 58% de ocorrer uma queda no volume de chuva maior ou igual a 100 mm, em relação ao que seria esperado para a época. Já na segunda safra, de milho, essas regiões mais desmatadas têm um risco de 44% de enfrentar uma redução maior ou igual a 200 mm nas chuvas. Onde a cobertura de vegetação é maior que 80%, o risco cai à metade.
Para Teixeira, essa situação vai começar a ter impacto no seguro agrícola. “Uma hora os prêmios vão ter de ser ajustados para levar em conta a variação do nível de conservação para conceder seguro e crédito”, opina.
As alterações climáticas já estão cobrando a conta do agronegócio não é de hoje, nem só na Amazônia. O site do Globo Rural publicou uma reportagem no último dia 5 informando que no ano passado dispararam no Brasil os pedidos de recuperação judicial feitos por produtores rurais justamente por causa das perdas nas lavouras afetadas por intempéries climáticas.
De acordo com a publicação, citando dados da Serasa Experian, foram 80 pedidos entre janeiro e setembro de 2023, alta de 300% na comparação com 2022. A expectativa é que haja uma nova alta em 2024.
Enquanto isso, a Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove) reduziu suas expectativas para a safra de soja neste ano. Em dezembro, a previsão era colher 160,3 milhões de toneladas. Agora já caiu para 156,1 milhões, conforme informou o InfoMoney.
Não é de hoje que a ciência alerta sobre a importância da floresta para os cultivos agrícolas e para o fato de que o agronegócio seria um dos primeiros a sentir os efeitos da mudança do clima. Mas os avisos não foram levados em conta em decisões políticas do setor, como na alteração do Código Florestal, que flexibilizou a proteção da vegetação nativa no país.
O agronegócio pode até não ser quem aperta a motosserra e acelera o correntão que derrubam a floresta, mas acaba se beneficiando dessa destruição. A maior parte das áreas abertas na Amazônia desde 1985 foi ocupada, posteriormente, justamente pela agropecuária, segundo levantamento feito pelo MapBiomas.
Uma outra análise da plataforma mostra que as áreas de pasto na Amazônia saltaram de 13,7 milhões de hectares em 1985 para 57,7 milhões de hectares em 2022. Já o cultivo de soja passou de cerca de 1 milhão de hectares para 7 milhões de hectares no mesmo período.
O setor, porém, não quer nem ouvir falar que está fazendo algo errado e que colaborou para piorar as condições pelas quais é penalizado hoje. Pelo contrário: tem se colocado apenas nesse papel de vítima.
Nesta semana, no início do ano legislativo, a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) se reuniu para definir as prioridades para o ano. Entre elas está trabalhar para aumentar o Seguro Rural, voltado para atender produtores que tiveram perdas de safra.
“As consultorias preveem entre 160 milhões e 130 milhões de toneladas [na safra 2024-2025], enquanto o país está acostumado a colheitas superiores a 200 milhões de toneladas”, afirmou o presidente da FPA, deputado Pedro Lupion (PP-PR), de acordo com reportagem do site O Eco.
O texto cita também uma declaração do deputado Alceu Moreira (MDB-RS), coordenador nacional de política agrícola da bancada ruralista: “Precisamos reconsiderar esse modelo de seguro, pois a atual quebra de safra mostra que, se não dermos apoio ao produtor diante dos riscos que ele corre, ele vai parar de produzir, o que impactará a economia de forma geral”.
Nenhuma palavra sobre restauração florestal nem sobre atuar para combater quem ainda desmata ilegalmente. Um outro pesquisador do mesmo grupo da UFMG, Raoni Rajão, que hoje atua no Ministério do Meio Ambiente, cunhou há algum tempo um termo para definir esse comportamento de parte do setor de destruir as bases que dão sustentação para o próprio negócio: agrossuicídio. Pois é.