Segundo a LAI, foram registrados 126 mortos em confronto por agentes rodoviários de 2019 a 2022, sendo 57 em massacres
A Polícia Rodoviária Federal (PRF) foi responsável por 12 matanças durante o governo de Jair Messias Bolsonaro, em 2019, quando a corporação passou a atuar regularmente em incursões em áreas urbanas e favelas. A informação foi confirmada e concedida ao Globo via Lei de Acesso à Informação (LAI).
Segundo a LAI, foram registrados 126 mortos em confronto por agentes rodoviários de 2019 a 2022, sendo 57 em massacres. Segundo a PRF, os dados só foram sistematizados a partir do ano de 2017.
Com o ex-presidente Michel Temer, entre 2017 e 2018, houve 36 mortes e quatro massacres vinculados à PRF. Na média anual, os dois índices subiram 75% e 50%, respectivamente, após a ascensão de Bolsonaro ao poder. A escalada poderia ser maior não fosse uma inflexão em 2020, com o início da pandemia de Covid-19.
A gestão atual do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ainda procura soluções e enfrenta resistências que vão de heranças bolsonaristas em postos-chave, como o corregedor exonerado na última quarta-feira, a uma portaria que permite a atuação de policiais rodoviários longe de estradas federais, cuja revogação havia sido defendida na transição.
PALCO DE MORTES
O Rio de Janeiro foi palco de mais da metade das matanças da PRF, sete no último governo, somando 28 mortos. Uma delas ocorreu em 20 de março de 2022, quando a corporação esteve, junto do Batalhão de Operações Especiais (Bope) e da Polícia Federal (PF), no Complexo do Chapadão, na zona Norte da capital fluminense.
Os agentes rodoviários responderam por três dos seis mortos. Um pouco depois, em 26 de maio, outro massacre ocorreu no Complexo da Penha, também no Rio, onde a corporação foi responsável por quatro das 23 mortes em confronto na ocasião.
Os agentes rodoviários responderam por três dos seis mortos
O segundo estado com mais mortes em operações da PRF durante o governo Bolsonaro foi Alagoas: dois massacres e oito mortes. Na sequência aparece Minas Gerais, que registrou uma matança, com 15 mortes.
De acordo com o sociólogo Daniel Hirata, coordenador do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni), da Universidade Federal Fluminense (UFF), os dados relativos à PRF realçam a mudança de perfil no órgão conduzida por Jair Bolsonaro durante o seu governo.
“Houve um redirecionamento para a PRF atuar de forma mais violenta. A imagem de um suposto combate duro à criminalidade tem um rendimento político muito grande na sociedade brasileira, isso não é coisa nova. No entanto, sob o ponto de vista de política para segurança pública, nunca se demonstrou eficaz”, disse o sociólogo ao Globo.
PORTARIA SEM VIGOR
Em outubro de 2020, uma força-tarefa da Polícia Civil e da PRF interceptou um comboio de milicianos em Itaguaí, na Baixada Fluminense. Os 12 suspeitos mortos, contudo, não aparecem na lista enviada pela corporação via LAI, já que, apesar da presença na ação, os confrontos fatais não envolveram policiais rodoviários diretamente.
Situações similares, que inflaram os dados sobre violência associados à instituição, também aparecem em casos computados pela PRF. Embora encabeçasse, com apoio da Polícia Militar, uma emboscada que resultou em 26 mortos em Varginha (MG), em 2021, a PRF só contabilizou 15 óbitos em seus controles internos.
Wendel Matos foi exonerado pela primeira vez em 2 de janeiro, mas o governo precisou recuar dez dias depois
A ação contra o chamado “novo cangaço”, a mais letal da corporação com Bolsonaro, originou um inquérito ainda em curso na PF, que apura suspeitas de execução e outras ilegalidades.
A Constituição Federal prevê que a PRF “destina-se, na forma da lei, ao patrulhamento ostensivo das rodovias federais”. O alargamento funcional ganhou fôlego em 2019, quando uma portaria do então ministro da Justiça, Sérgio Moro, autorizou o efetivo a cumprir até mandados de busca e apreensão, uma atribuição de polícias de natureza investigativa, como a Polícia Federal.
André Mendonça editou, em 2021, um novo texto que excluía essa previsão, mantendo a permissão para que a corporação batesse ponto em ações conjuntas fora das estradas. Em 2022, uma decisão judicial chegou a barrar esse aval, após pedido do Ministério Público Federal, mas uma liminar concedida pelo presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, Messod Azulay Neto, restabeleceu a medida.
O atual ministro da Justiça, Flávio Dino, pregou ainda como coordenador do grupo sobre o tema na transição, a extinção da portaria, já que não existiria base legal para que a PRF exercesse funções além de sua prerrogativa constitucional. Já o novo diretor-geral da instituição, Antônio Fernando Oliveira, saiu pela tangente ao tratar do assunto quando tomou posse, mas defendeu a possibilidade de entrar em favelas em situações excepcionais.
Questionada sobre os dados divulgados pelo LAI, a PRF respondeu que “atua fora do ambiente rodoviário, em áreas de interesse da União, quando em apoio a outros órgãos”. A corporação afirmou que “qualquer registro de morte em ação policial deve ser tratado como exceção e analisado sob aspectos operacionais e correcionais”, mas frisou que “abordou e fiscalizou mais de 11 milhões de pessoas” em 2022, “prendendo mais de 45 mil”.
LIMPEZA NA PRF
Logo após assumir, o novo diretor-geral da PRF, Antônio Fernando Oliveira, iniciou uma limpa, substituindo os superintendentes herdados de Bolsonaro. Wendel Benevides Matos foi exonerado pela primeira vez em 2 de janeiro, mas o governo precisou recuar dez dias depois. Como seu mandato era válido até novembro, a troca não era permitida.
Foi necessário que a Controladoria-Geral da União (CGU) emitisse um parecer autorizando a mudança, ocorrida na última quarta-feira, sob a justificativa de que era preciso “afastar qualquer sugestão de parcialidade sobre os processos apuratórios internos”.
Antes coordenador da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos do Ministério da Mulher comandado por Damares Alves, Matos foi nomeado corregedor por Silvinei Vasques, ex-diretor-geral alvo de uma série de acusações que correm fora e dentro da PRF.
Procurado pela reportagem, Wendel Matos afirmou que não tem autorização superior para conceder entrevista. Interlocutores relatam que o agora ex-corregedor soube da exoneração pelo Diário Oficiar. Surpreendido com a decisão, ele ainda estuda que medidas tomar e não descarta judicializar a questão.
Por "Meio Norte"