Crime organizado e milícias estão ligados a desmatamentos e queimadas
Política
Publicado em 17/09/2019

Relatório cita a ‘Máfia dos Ipês’, que desmata, queima e toma posse da terra com a criação de gados para depois revender com documentos falsos. Servidores públicos, indígenas, policiais e agricultores que tentam denunciar os crimes sofrem ameaças, que podem levar a assassinatos. Falta de investigação e proteção às testemunhas cria sensação de impunidade.

 

O desmatamento e as queimadas na Amazônia estão ligados a uma rede de criminosos que pagam por mão-de-obra, por grandes maquinários (motosserras, tratores, correntes, caminhões), e por proteção de milícia armada contra quem tenta denunciar os crimes, aponta um relatório da Humans Rights Watch (HRW), divulgado nesta terça (17).

Os criminosos ameaçam indígenas, agricultores, agentes públicos e até policiais. No alvo do crime estão os chamados "defensores das terras", segundo o relatório “Máfia do Ipê: como a violência e a impunidade impulsionam o desmatamento na Amazônia brasileira”, feito pela organização.

De acordo com a HRW, a destruição da floresta é consequência da grilagem, crime que ocorre quando as terras são tomadas por indivíduos que se apropriam delas, segundo o documento. Os criminosos desmatam, queimam, e colocam gados sobre o pasto que sobra, para depois revender com documentos falsos, “legalizando” a área invadida.

"O objetivo [do relatório] era documentar a intimidação e a violência contra pessoas que defendem a floresta. A conclusão é que existem redes criminosas na Amazônia que estão envolvidas na extração ilegal de madeira em larga escala e em outros crimes, como ocupação de terras públicas, grilagem e, em alguns casos, com garimpo ilegal e tráfico de drogas", afirma Cesar Munoz, pesquisador e um dos autores do relatório da Human Rights Watch.

Cláudio José da Silva, coordenador dos "Guardiães da Floresta", às margens do rio Pindaré, que fica no território indígena Caru, no Maranhão. Os guardiões são índios Tenetehara que patrulham as terras, detectam a extração ilegal de madeira e denunciam às autoridades. — Foto: Brent Stirton/ Getty Images para Human Rights WatchCláudio José da Silva, coordenador dos "Guardiães da Floresta", às margens do rio Pindaré, que fica no território indígena Caru, no Maranhão. Os guardiões são índios Tenetehara que patrulham as terras, detectam a extração ilegal de madeira e denunciam às autoridades. — Foto: Brent Stirton/ Getty Images para Human Rights Watch.

Cláudio José da Silva, coordenador dos "Guardiães da Floresta", às margens do rio Pindaré, que fica no território indígena Caru, no Maranhão. Os guardiões são índios Tenetehara que patrulham as terras, detectam a extração ilegal de madeira e denunciam às autoridades. — Foto: Brent Stirton/ Getty Images para Human Rights Watch

 

O documento foi elaborado a partir de mais de 170 entrevistas feitas entre 2017 e 2019 – entre elas, policiais, promotores, agentes do Instituto brasileiro de Meio Ambiente (Ibama), Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e Fundação Nacional do Índio (Funai), indígenas, comunidades locais e agricultores. Os dados sobre crimes relacionados ao uso do solo são da Pastoral da Terra, ligada à Igreja Católica – foram ao menos 300 crimes nos últimos dez anos, segundo a entidade. O governo federal não tem dados que monitoram este tipo de crime.

As pesquisas de campo foram feitas no Maranhão, Pará e Amazonas, com o apoio de entidades parceiras que atuam contra a violência no campo e na defesa dos direitos indígenas, de acordo com a entidade.

A análise se debruça sobre 28 assassinatos – a maioria cometido a partir de 2015 –, sobre 4 tentativas de assassinato e 40 ameaças de morte “nos quais havia evidências críveis” da ligação entre criminosos e desmatamento.

A HRW é uma organização sem fins lucrativos, criada em 1978, que conta atualmente com cerca de 400 profissionais em diversos países, como advogados, jornalistas, especialistas e pesquisadores de várias áreas.

Confira abaixo os principais pontos e, em seguida, o detalhamento:

 

Crime organizado: o desmatamento e queimadas ilegais são praticadas por uma rede de criminosos que podem pagar por mão-de-obra e grandes maquinários que entram nas florestas para retirar as árvores mais valiosas -- entre elas, o Ipê. Vem daí o nome da máfia. A retirada de árvores em pequenos trechos pode não ser detectada pelos satélites, que só capta a destruição quando toda a vegetação é retirada.

Ameaças aos "guardiões" da floresta: os criminosos ameaçam matar e, por vezes, cometem assassinatos daqueles que denunciam os crimes praticados pela máfia. Servidores públicos, policiais, indígenas e moradores locais estão entre os alvos.

Assassinos impunes: policiais e promotores ouvidos pela HRW dizem que as mortes ocorrem em locais de difícil acesso – a perícia na cena do crime raramente é feita. Dos 300 crimes associados ao uso do solo, apontados pela Pastoral da Terra nos últimos dez anos, só 14 foram a julgamento. O relatório da HRW se debruça sobre 28 homicídios – destes, só 2 foram julgados. Entre as 40 ameaças de morte, só uma teve denúncia criminal.

Fiscalização precária: em 2009, havia 1600 inspetores do Ibama no Brasil. Em 2019, são 780 – e apenas uma fração deles estão na Amazônia, segundo o relatório. No Pará, são 8 inspetores para cuidar de uma área do tamanho da França. Na Funai, de 3.111 funcionários em 2012, restaram apenas 2.224 em 2019.

Desmonte da estrutura ambiental: o relatório aponta que, embora o desmatamento venha crescendo desde 2012, em 2019 ele atingiu índices elevados. A organização relaciona ao discurso anti-ambiental do então candidato e agora presidente Jair Bolsonaro (PSL) e às medidas que restringem a rede de proteção, como a transferência da Fundação Nacional do Índio para o Ministério da Agricultura, os cortes recentes no Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (Ibama) e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio)

Crime organizado e desmatamento

O desmatamento ilegal é um negócio milionário, de acordo com a HRW: um único tronco de ipê pode ser vendido entre R$ 2 mil a R$ 6 mil reais.

Para retirar estas árvores da floresta, os criminosos invadem as áreas – sejam terras sem destinação, sejam áreas indígenas ou sob algum tipo de conservação – e cortam as mais valiosas, deixando outras para “despistar” o satélite que detecta sinais de desmatamento, de acordo com Luciano Evaristo, ex-diretor de Proteção Ambiental do Ibama em entrevista à HRW.

 

“Enquanto o desmate em pequena escala correspondia a um quarto do desmatamento em 2002, em 2012 ele já representava a metade”, afirma o relatório.

 

O corte das árvores, transporte dos troncos e distribuição da madeira demanda uma grande estrutura envolvendo maquinários, contratação de mão-de-obra, e madeireiras legalizadas que superestimam a produção real para legalizar a madeira irregular, com notas falsas, afirma o relatório.

 

Em alguns casos, a rede tinha até a participação de agentes do poder público. De acordo com o documento, um grupo organizado no Acre desmatou 180 km² de floresta e tinha em sua folha de pagamento cinco funcionários do Ibama, o diretor do órgão no estado e quatro policiais locais, formando uma milícia. “Usando carros da polícia, armas e uniformes, a milícia ameaçava e atacava moradores locais”, de acordo com uma Força Tarefa montada para desbaratar o esquema.

 

Em Altamira, no Pará, um grupo organizado desmatou 290 km² de floresta entre 2012 e 2015, segundo o Ibama -- área equivalente a quase três vezes o tamanho de Paris. O responsável pelo desmatamento pode pegar até 238 anos de prisão, segundo o Ministério Público do Pará.

 

Os trabalhadores eram colocados em meio à floresta para desmatar, e só eram pagos após retirarem todas as árvores mais valiosas. O esquema movimentou R$ 1,9 bilhões de reais, segundo o Ibama, citado no relatório.

 

No assentamento Terra Nossa (PA), criado pelo Incra há mais de uma década, fazendeiros ocuparam a terra, desmataram e fizeram até mineração nas terras. As árvores derrubadas foram transportadas pela única estrada do assentamento, sob a proteção de milicianos armados, que ameaçavam os moradores, segundo líderes comunitários relataram à HRW.

 

No Maranhão, o desmate dentro da Reserva Biológica do Gurupi foi feito por um fazendeiro que contratou homens armados para ameaçar e expulsar os moradores da comunidade de Rio das Onças, de acordo com o relatório. O fazendeiro chegou a contratar um policial aposentado, que por sua vez contratou dois policiais militares da ativa, para matar o líder comunitários Raimundo Santos, segundo confissão feita pelo próprio fazendeiro.

 

Em Colniza (MT), madeireiros contrataram assassinos que se autodenominavam “os encapuzados” para intimidar e atacar moradores locais, com o objetivo de expulsá-los da terra.

 

Ameaças aos ‘guardiões’ da floresta

Os criminosos ameaçam matar e, por vezes, cometem assassinatos daqueles que denunciam os crimes praticados pela máfia. Servidores públicos, policiais, indígenas, agricultores e moradores locais estão entre os alvos.

 

De acordo com a Pastoral da Terra, ligada à Igreja Católica, mais de 300 crimes relacionados ao uso do solo foram documentados nos últimos dez anos. Só 14 foram a julgamento, desde então.

 

A HRW afirma que o programa de proteção à testemunha não consegue trazer segurança aos envolvidos, porque as ameaças não são investigadas e a "proteção", em geral, se restringe à ligações telefônicas periódicas – em um dos casos citados, um ameaçado recebeu R$ 80 para mudar para uma cidade onde havia sinal telefônico, mas ele se recusou porque teria que passar pela estrada dominada por criminosos.

 

A HRW documenta 28 assassinatos – a maioria cometido a partir de 2015 –, 4 tentativas de assassinato e 40 ameaças de morte “nos quais havia evidências críveis” da ligação entre criminosos e desmatamento.

 

Entre eles, estão:

 

Dilma Ferreira Silva, morta em um triplo homicídio em um assentamento no PA. O relatório diz que, segundo a polícia, o crime foi cometido por um dono de terras que fazia extração ilegal de madeira e havia sido denunciado por ela.

A morte e o desaparecimento de dois moradores do assentamento Terra Nossa, no PA, que ameaçaram denunciar extração ilegal de madeira. Um relatório do Incra apontou que os donos das terras estavam de fato envolvidos em desmate e mineração ilegais.

A líder indígena e vencedora do prêmio Educador Nota 10, Naraymi Suruí, que foi alvo de tiros duas semanas após confrontar madeireiros criminosos dentro do território indígena Sete de Setembro em 2017.

O policial militar João Luiz de Maria Pereira, durante uma operação contra desmatamento na Floresta Nacional do Jamanxim (PA), em 2016.

O ambientalista Raimundo Santos, citado na seção anterior, morto em 2015 após reportar a extração ilegal de madeira na reserva biológica do Gurupi.

O indígena Eusebio Ka’apor, líder do grupo da tribo Ka’apor que monitorava o território indígena Alto Turiaçu, no Maranhão. Após a sua morte, outros seis ‘guardiões da floresta’ também receberam ameaças de morte.

Os agricultores Osvalinda Pereira e o marido Daniel Pereira, vítimas de ameaças durante uma década por denunciarem o desmatamento ilegal no PA.

Assassinos impunes

Policiais e promotores ouvidos pela HRW dizem que as mortes ocorrem em locais de difícil acesso – a perícia na cena do crime raramente é feita.

De acordo com a Pastoral da Terra, menos de 4% dos 230 crimes envolvendo mais de 300 vítimas foram a julgamento.

No Pará, foram apenas 4 dos 89 assassinatos desde 2009

Em Rondônia, foram 3 dos 66 homicídios

No Maranhão, 2 dos 46 crimes

No Mato Grosso, com 16 assassinatos, e no Amazonas, com 8 homicídios, nenhum autor foi a julgamento.

 

"Os promotores dizem que não acusam porque a investigação da polícia é falha. A polícia diz que que os crimes ocorrem em áreas distantes e não há veículos ou recursos para chegar até lá. Mas isso não explica tudo. Vimos casos no Maranhão em que a maioria das mortes dos indígenas ocorreu em cidades, onde havia delegacias", afirma Munoz, da HRW.

 

Outro problema na investigação é a falta de autópsia nos corpos, que poderiam revelar como as mortes ocorreram.

 

"Houve uma morte em Almirante do Maranhão, em uma praça, que fica a menos de 1 km da Polícia Civil e a PM não resguardou o local do crime. A polícia demorou mais de 30 horas para chegar", relata.

 

Fiscalização precária

Em 2009, havia 1600 inspetores do Ibama no Brasil. Em 2019, são 780 – e apenas uma fração deles estão na Amazônia, segundo o relatório.

 

No Pará, são 8 inspetores para cuidar de uma área do tamanho da França. Na Funai, de 3.111 funcionários em 2012, restaram apenas 2.224 em 2019.

 

Os cortes seguem a redução do orçamento das pastas. De 2016 a 2018, o orçamento anual do Ibama, corrigido pela inflação, caiu 8%; e o da Funai, 11%, segundo a organização.

 

Desmonte da estrutura ambiental

O relatório aponta que, embora o desmatamento venha crescendo desde 2012, em 2019 ele atingiu índices elevados.

 

A organização relaciona ao discurso anti-ambiental do então candidato e agora presidente Jair Bolsonaro (PSL) e às medidas que restringem a rede de proteção.

 

A HRW cita a transferência da Fundação Nacional do Índio para o Ministério da Agricultura, e os cortes recentes no ICMBio e Ibama. "Em um único dia, em fevereiro", aponta o relatório, "foram demitidos 21 dos 27 diretores regionais do Ibama responsáveis por aprovar as operações anti-desmatamento. Em agosto, quase todas as posições ainda estavam vagas", afirma o documento.

 

As multas por desmatamento aplicadas pelo Ibama caíram 38% entre janeiro e agosto deste ano, comparado ao mesmo período do ano passado.

 

Outro agravante para o cenário atual foi o corte de 23% no orçamento do Ministério do Meio Ambiente.

 

Por Elida Oliveira, G1

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